A aprovação do adiamento por um ano da vigência da lei antidesmatamento europeia (EUDR, na sigla em inglês) e a inclusão de novas medidas que beneficiam países desenvolvidos, como a classificação “sem risco”, já eram esperadas pelo setor agropecuário brasileiro. Mesmo assim, as decisões de Bruxelas preocuparam os produtores e esquentaram debates sobre possíveis questionamentos da norma na Organização Mundial do Comércio (OMC).
A principal crítica é que o novo texto torna a lei antidesmatamento ainda mais discriminatória, com privilégios e facilidades aos países desenvolvidos e rigor e burocracia para as nações que ainda têm espaço para avançar, como o Brasil. Está em análise também o impacto que o movimento europeu poderá ter sobre as negociações do acordo de livre comércio com o Mercosul.
Na visão de Sueme Mori, diretora de Relações Internacionais da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), as mudanças mostram que o Parlamento Europeu se movimentou para atender aos interesses dos membros do bloco, por mais que o adiamento seja de interesse geral. Apesar da pressão dos países exportadores, como Brasil, Malásia e Indonésia, as inovações do texto aumentam o caráter “punitivo” da norma.
“As alterações tiram o peso dos países europeus, tira a pressão interna dos países que, praticamente, não terão que apresentar nada, serão eximidos da due diligence, dos polígonos de produção, das checagens anuais. Isso aumenta muito o caráter discriminatório da medida”, afirmou. “A União Europeia fala em dar exemplo, em aumentar ambição climática, mas coloca data de corte retroativa. A lei é punitiva, não há incentivos”, completou.
Segundo ela, as emendas aprovadas afetam diretamente a competitividade brasileira, não só na relação bilateral com a Europa, mas com demais parceiros globais. “O fato de o Brasil ter a competitividade crescente que temos, pois ainda não atingimos o pico, faz com que fiquemos muito na vitrine, sejamos alvo e sejamos questionados. Se formos classificados como de alto risco pela EUDR, isso influencia a relação com outros parceiros, do ponto de vista regulatório e de imagem”, ponderou.
A nova classificação “sem risco”, feita sob medida para tirar a burocracia dos países europeus que também precisam cumprir a lei, também pode beneficiar concorrentes, como os Estados Unidos. Mas Mori enfatizou que um dos requisitos para estar nessa categoria é participar do Acordo de Paris. “Hoje, os Estados Unidos estão, mas não se sabe o que pode ocorrer quando [Donald] Trump assumir a presidência”, relatou. Na primeira passagem pela Casa Branca, o presidente retirou os americanos do acordo.
Mori disse ainda que, apesar de a OMC e o multilateralismo estarem enfraquecidos, o Brasil e demais países exportadores devem avaliar a possibilidade de questionamento formal da EUDR. Ela disse também que haverá espaço para diálogo com o adiamento, mas que não vê disposição do lado europeu para discutir ou rever temas centrais, como a data de corte e o não reconhecimento da diferenciação entre desmatamento legal e ilegal.
“O diálogo tem que continuar, para levar nossas credenciais, colocar os impactos. Se isso efetivamente vai se transformar em algum tipo de alteração ou reconsideração dos europeus, ainda não sabemos. Mas a via da OMC deve ser considerada”, pontuou.
Outra preocupação da CNA é com o futuro do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia. O governo brasileiro mantém a expectativa de ratificar os termos ainda em 2024.
Mori diz que é temerário assinar um acordo sem ter clareza do alcance das restrições ambientais que estão no papel agora e as que poderão ser criadas futuramente, dentro do Green Deal europeu. Segundo ela, estão em jogo US$ 14,6 bilhões de exportações das sete cadeias brasileiras afetadas pela EUDR. O montante se refere aos embarques dos produtos para a UE em 2023.
“Negociar um acordo comercial para baixar tarifa e negociar acesso em que os dois lados fazem concessões e abrem mercado, mas outra legislação fecha mercado unilateralmente não dá”, explicou. A CNA já formalizou um pedido ao governo para que seja incluído um mecanismo de reequilíbrio das concessões na relação bilateral para garantir “acesso real” dos produtos agropecuários ao mercado europeu.
A indefinição também preocupa. Como o texto foi alterado, ele passará por negociações internas, entre conselho, comissão e parlamento europeus. Não se sabe em que prazo isso será feito nem mesmo se ocorrerá antes do fim do ano. Se não houver decisão até lá, o adiamento pode falhar e a lei pode entrar em vigor no início de 2025 sem modificação, o que também seria prejudicial ao Brasil.
O governo brasileiro preferiu reagir com positividade e otimismo ao adiamento aprovado pelo Parlamento Europeu. O secretário de Comércio e Relações Internacionais do Ministério da Agricultura, Luis Rua, disse que a medida dá prazo adicional para intensificar o diálogo e a negociação com os europeus “dentro de um espírito construtivo” alinhado, principalmente, com o acordo Mercosul-União Europeia.
“Nos dá essa perspectiva, de que podemos voltar para a mesa de negociação e ter uma discussão mais aprofundada”, afirmou.
Ele admitiu preocupação com a inclusão da nova classificação de países “no risk” e disse que chamará brasileiros impactados pela EUDR para avaliar os efeitos das regras e uma estratégia conjunta de atuação que atenda aos interesses nacionais.
“Nos causa preocupação a inclusão de cláusulas, como a do ‘no risk’. Vemos beneficiados e não beneficiados. Quando analisamos o marco temporal de 1990 [para países que mantiveram ou aumentaram área florestal após esse prazo], vemos, de fato, que tem um caráter discriminatório e que pode aumentar ainda mais esse caráter, colocando todo o fardo nos países em desenvolvimento”, destacou.
Rua disse que o governo mantém no horizonte a possibilidade de acionar a OMC contra a EUDR, mas que é necessário esgotar as demais opções antes. “O prazo de um ano nos dá chance de discutir, dialogar, expor nossas preocupações. Antes não havia esse espaço para construção, mas agora tem e o diálogo está fluido”, concluiu.
As mudanças na lei também foram alvo de críticas de ativistas ambientais do bloco. “Ao forçar mudanças substanciais propostas na lei, o EPP desconsiderou os princípios democráticos, minou a credibilidade da UE e deu um machado nos esforços da Europa para acabar com o desmatamento em suas cadeias de suprimentos “, disse Julia Christian, ativista da Fern, ONG europeia fundada em 1995. As emendas aprovadas foram apresentadas pelo EPP (Partido Popular Europeu), grupo político conservador que domina o Parlamento.
O receio é que a nova classificação de países “sem risco” de desmatamento sabote o EUDR. “As empresas poderiam facilmente ‘lavar’ produtos não conformes, fazendo com que mercadorias contaminadas pelo desmatamento transitassem por um país ‘sem risco’ antes de serem importadas para a UE”, disse Christian, em nota enviada à reportagem.
Segundo a Fern, a China pode estar entre os países beneficiados pela nova classificação de risco. A imprensa europeia destaca que partidos que votaram contra a emenda também ressaltaram preocupação com a concorrência chinesa, principalmente no ramo madeireiro.
A ONG ressalta que a medida atende principalmente Estados-membros da União Europeia, com um “passe-livre”, o que prejudicará “gravemente a credibilidade internacional” do bloco e alimentará tensões com parceiros comerciais. “Trata-se de um caso flagrante de tratamento injusto dos países produtores fora da UE, o que só irá inflamar a sua raiva. A mensagem para o resto do mundo é inequívoca: é preciso parar de destruir as suas florestas, mas a UE não aplicará as mesmas regras às suas próprias florestas, ameaçadas pela degradação generalizada”, completou Christian, na nota.
A Fern defendeu que a Comissão Europeia não negocie com o conselho e o parlamento as alterações, mas retire sua proposta inicial, que era apenas de adiamento por um ano da EUDR.
A imprensa europeia relata que alguns partidos, como Renew, Verdes, Socialistas e Democratas, devem iniciar um “processo legal” contra as mudanças e pedem uma nova votação. O EPP, autor das emendas, defende que a atual EUDR é um “monstro burocrático” e que as alterações pretendem ajudar as empresas europeias, para que não sejam penalizadas por “encargos administrativos excessivos”.
O periódico Les Echos relata que a questão ainda não está definida. “A Comissão tem agora a escolha entre retirar o seu pedido de adiamento de um ano, o que anularia as alterações, ou reunir os três co-legisladores com vista a chegar a um acordo, o que parece ser o cenário mais provável”, escreveu.
Segundo a publicação, nos bastidores, França, Alemanha, Finlândia, Suécia ou Romênia batalham para saber se serão classificados em “baixo risco” ou “sem risco”.
“Mais de um milhão de cidadãos europeus exigiram uma lei forte para proteger as florestas e conseguiram-na em 2022. É vergonhoso que hoje o PPE tenha abandonado o seu apoio a esta lei, necessária à luz da emergência climática, e se tenha aliado a partidos populistas e de extrema direita para enfraquecê-lo”, disse Sébastien Risso, diretor de política florestal do Greenpeace na UE, ao Les Echos.