A Comissão Europeia, braço executivo da UE, vê espaço para exigir que suas normas sanitárias e ambientais valham também para os produtos agroalimentares importados pelo bloco. São as chamadas “cláusulas-espelho’’, promovidas pela França. Mas os próprios europeus veem risco de conflitos fortes com seus parceiros comerciais.
Em julho de 2021, o Conselho da União Europeia e o Parlamento Europeu pediram para a Comissão Europeia apresentar um relatório avaliando a lógica e a viabilidade legal da aplicação das normas sanitárias e ambientais da UE (incluindo bem-estar animal e processos de produção) aos alimentos importados.
A UE é o terceiro maior importador de produtos agroalimentares do mundo. Suas compras são dominadas por itens como café, chá, óleo de palma, frutas tropicais e de commodities cuja produção interna é limitada, como a soja. Já as exportações incluem desde leite em pó, carne suína e cereais até produtos de valor agregado mais alto, como vinhos e outras bebidas alcoólicas, azeites e queijos. Assim, como um ator de peso no mercado internacional, a UE busca ter maior influência sobre o desenvolvimento de regulamentos e normas de importância global.
O rascunho do relatório da Comissão Europeia, ao qual o Valor teve acesso, foi preparado após consulta pública. E a conclusão é que “há algum espaço para estender aos produtos importados as normas de produção da UE, desde que isso seja feito no pleno respeito às regras relevantes da OMC”.
Risco de retaliação
O documento alerta que “algumas medidas tomadas pela UE de forma autônoma para regular aspectos ambientais ou éticos globais de produtos importados, mesmo que em total conformidade com as regras da OMC, ainda podem ser controversas para os membros da entidade e podem sempre ser contestadas no sistema de solução de controvérsias da OMC’’. E diz que medidas determinadas como ilegítimas, ou protecionistas, “podem expor a UE a um risco de retaliação”.
Para a UE, embora haja espaço político para buscar a aplicação de requisitos de saúde e ambientais (incluindo bem-estar animal) sobre processos e métodos de produção a produtos importados de maneira compatível com a OMC, cada caso precisa ser cuidadosamente analisado com base em seus próprios méritos. É preciso levar em conta, também, a viabilidade técnica e econômica dos mecanismos de controle.
“Como são os métodos de produção ou processamento no país terceiro que estão sendo regulamentados, a viabilidade e proporcionalidade dos meios adequados para controlar e impor sua aplicação deve ser avaliada em relação aos custos e benefícios de fazê-lo”, avalia a UE no rascunho.
Para a Comissão, “preocupações que têm uma dimensão global e são reconhecidas por pelo menos parte da comunidade internacional (por exemplo, mudança climática, perda de biodiversidade e combate à resistência antimicrobiana) são mais suscetíveis de serem aceitas como razões legítimas para ação”.
O relatório final é esperado ainda para este mês. O tema das cláusulas-espelho, até hoje, está mal definido e fontes notam que, em Bruxelas, parece não haver mais a mesma prioridade ou visibilidade depois da guerra na Ucrânia.
Modelo sustentável
Lobbies agrícolas contestam a própria estratégia de “Farm to Fork” (da fazenda ao garfo) que tem por objetivo fazer do sistema alimentar europeu um modelo de sustentabilidade em todos os estágios da cadeia de valor dos alimentos. Por ela, a Europa terá que reduzir as emissões de gases de efeito estufa, o que inclui cortar 50% do uso de pesticidas químicos, reduzir em 20 % (no mínimo) o uso de fertilizantes, aumentar a área de produção orgânica para 25% e plantar mais florestas.
A presidência francesa da UE neste semestre já esclareceu que cláusulas-espelho não se referem necessariamente a uma legislação específica, mas a um conjunto de iniciativas, como a lei do desmatamento. O fato é que os exportadores para o bloco terão, cada vez mais, que se ajustar às normas europeias.