Por Luís Eduardo Pacifici Rangel, membro do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS), Engenheiro Agrônomo, Ex-Secretário de Defesa Agropecuária e Ex-Diretor de Análise Econômica e Políticas Públicas do MAPA.
Nas últimas conferências internacionais sobre clima e finanças sustentáveis, um termo ganhou força: blended finance. A ideia parece simples: usar recursos públicos com condições favorecidas (subvenções, garantias, assistência técnica) para atrair capital privado para causas nobres como agricultura sustentável, transição energética ou conservação de florestas.
É uma proposta empolgante, vendida como inovadora. Mas há algo que poucos reconhecem: o Brasil pratica blended finance desde os anos 1970 – e em larga escala.
O que é blended finance?
Segundo a OCDE, blended finance é o “uso estratégico de capital público para mobilizar financiamento privado rumo aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)”. Em termos práticos, isso significa que o Estado entra com parte do risco ou com subsídios, criando atratividade para investidores privados em setores que, sozinhos, não conseguiriam acesso a crédito ou apresentariam risco elevado.
Em países em desenvolvimento, é visto como a “chave” para destravar trilhões de dólares necessários à transição climática. Modelos como leilões reversos, títulos verdes, fundos garantidores e instrumentos vinculados ao desempenho (results-based finance) estão se multiplicando.
No Brasil, isso já existe há décadas
Desde o “milagre econômico” da década de 1970, o governo brasileiro utiliza instrumentos de equalização de juros para baratear o custo do crédito rural. O sistema de subvenção via equalização de taxas de juros (IRES) é um típico exemplo de blended finance: o setor público cobre a diferença entre o custo de capital do mercado e a taxa cobrada dos produtores rurais. Com isso, o crédito flui, a produção aumenta e o risco é mitigado.
Estudo de Castro e Teixeira (2005) mostra que cada real gasto com equalização de juros para a agricultura familiar gerava R$ 1,75 de incremento no PIB. No caso da agricultura empresarial, o retorno era ainda maior: R$ 3,57 por real investido. Além disso, o impacto sobre a arrecadação tributária era expressivo: 24,5% de retorno para a agricultura familiar, e até 74% para os gastos em insumos agrícolas na agricultura empresarial.
Isso é blended finance. Só não tinha esse nome.
Um modelo voltado à segurança alimentar e bem-estar social
Diferente dos modelos de finanças combinadas propostos hoje no cenário internacional, o modelo brasileiro foi pensado para promover a segurança alimentar, conter o êxodo rural e fomentar o bem-estar social.
Nas décadas seguintes, programas como o Pronaf, Programa ABC e linhas voltadas à agricultura de baixo carbono continuaram seguindo essa lógica: o Tesouro Nacional banca uma parte da conta (via equalização de juros), o setor financeiro operacionaliza, e o agro brasileiro responde com produção, renda e emprego.
Em 2023, o Plano Safra disponibilizou R$ 435 bilhões, dos quais cerca de R$ 85 bilhões tiveram subvenção direta. Novamente: blended finance em larga escala.
O desafio agora é climático
Se a lógica funcionou para gerar alimentos e renda, a pergunta que se impõe é: estamos prontos para aplicar essa mesma inteligência financeira à crise climática?
A resposta é: estamos quase lá. Mas será preciso fazer ajustes.
O novo programa Caminho Verde Brasil (CVB), anunciado em 2024, representa um passo nessa direção. Com o objetivo de restaurar 40 milhões de hectares, financiar práticas sustentáveis e reduzir as emissões da agropecuária, o CVB propõe usar mecanismos de leilão de crédito, capital catalítico e condicionalidades ambientais – ou seja, o verdadeiro blended finance climático.
Mas há riscos. A experiência internacional mostra que:
- Condicionalidades ambientais fracas levam ao greenwashing.
- Modelos complexos excluem pequenos produtores e cooperativas.
- Alta dependência de mecanismos de mercado pode gerar concentração de acesso ao crédito.
O que o Brasil pode ensinar (e aprender)
O Brasil tem vantagem: uma estrutura consolidada de crédito rural e décadas de experiência com incentivos agrícolas via equalização de juros. Além disso, instituições como o BNDES, o Banco do Brasil, a Embrapa e o MAPA conhecem o território, os ciclos da produção e as realidades regionais.
Mas para ser protagonista no uso de blended finance climático, o país precisa:
- Criar métricas ambientais auditáveis (MRV robusto) para condicionar o crédito.
- Integrar os programas ambientais (CVB) às políticas já existentes, como Plano Safra e o RenovaBio.
- Assegurar acesso equitativo aos recursos para agricultores familiares e agroecológicos.
- Evitar dependência excessiva de mercados voluntários de carbono e fortalecer soluções jurisdicionais.
- Garantir transparência na concessionalidade e impacto dos investimentos.
Conclusão: do agro produtivo ao agro sustentável
O Brasil já provou que sabe usar finanças públicas para transformar o campo. O crédito rural brasileiro é, em essência, uma política de blended finance. O que falta agora é reorientar esse modelo para enfrentar os desafios do século XXI: clima, biodiversidade e resiliência agroecológica.
Se conseguirmos, o país pode não apenas liderar a produção de alimentos, mas também se tornar referência global em finanças sustentáveis para o desenvolvimento rural com justiça climática.