O agronegócio brasileiro tem sido o principal ator da resposta do setor privado à insegurança alimentar no País. De acordo com estudo inédito da Fundação José Luiz Setúbal, o agro concentrou 52,28% das iniciativas empresariais mapeadas entre 2020 e 2023, superando setores como Alimentos & Bebidas (26,87%) e Comércio Varejista (21,29%).
A pesquisa, intitulada Investimento e apoio empresariais para garantia da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil (2020–2023), analisou 681 ações de 98 grandes empresas em um período marcado pelos efeitos da pandemia de Covid-19 e pelo desmonte de políticas públicas de combate à fome.
Apesar da liderança numérica, o levantamento acende um alerta sobre a efetividade e o foco estratégico dessas iniciativas. As ações do setor privado — inclusive do agro — estão concentradas geograficamente nas regiões Sudeste e Sul, especialmente em estados onde as empresas têm sede, como São Paulo e Paraná, enquanto as regiões Norte e Nordeste — as mais afetadas pela fome — seguem subatendidas.
“O agro está à frente, mas ainda não está onde mais importa. É preciso sair da zona de conforto e investir em territórios de maior vulnerabilidade, com projetos estruturantes e visão de longo prazo”, afirma Pedro Luiz dos Santos, pesquisador do Instituto Pensi, da Fundação José Luiz Setúbal.
Gargalos na cadeia alimentar e na estrutura de investimento
Outro achado relevante é que mais de 70% das ações do setor privado estão focadas nas pontas da cadeia alimentar — produção e consumo, negligenciando etapas intermediárias como armazenamento, processamento e transporte, onde ocorrem perdas significativas de alimentos no Brasil.
Além disso, o estudo revela um baixo grau de institucionalização dos investimentos sociais empresariais: apenas 36 das 98 empresas analisadas contam com fundações ou institutos próprios. A maior parte das ações está vinculada a departamentos de marketing ou responsabilidade social corporativa, o que limita a continuidade, escala e foco estratégico.
Outro dado preocupante é o desperdício: o Brasil joga fora cerca de 55 milhões de toneladas de alimentos por ano, mas menos de 5% das ações analisadas abordaram a redução de perdas ou o reaproveitamento de alimentos.
“Estamos falando de um país com capacidade de alimentar o mundo — e ainda temos milhões passando fome. O agronegócio tem papel fundamental na correção dessas distorções, mas precisa olhar para a cadeia como um todo e para além da porteira”, destaca o pesquisador.
Visão ESG x Greenwashing
O estudo também identificou a presença de ações pontuais e reativas, muitas vezes ligadas a eventos emergenciais, como a pandemia ou enchentes. Grande parte das iniciativas não apresenta metas, indicadores de impacto ou relatórios transparentes — apenas 32,67% das empresas divulgaram dados públicos completos nos três anos analisados.
Casos de greenwashing e social washing também foram detectados, como a rotulagem de doações de alimentos ultraprocessados como ações nutricionais, ou iniciativas obrigatórias sendo divulgadas como inovações.
No que diz respeito aos beneficiários, as ações priorizaram pessoas em vulnerabilidade econômica (21,7%) e, em menor grau, grupos específicos como mulheres, indígenas e ribeirinhos (18,5%). Ainda assim, menos da metade das iniciativas teve foco direto nesses públicos.
Oportunidade de liderança
Apesar dos gargalos, os dados mostram caminhos promissores. Cerca de 46% das ações do agro estão alinhadas à meta 2.4 do ODS 2 (Fome Zero e Agricultura Sustentável), focada em práticas agrícolas resilientes e sustentáveis. Outros 42% se relacionam à meta 2.1, que trata do acesso universal e contínuo a alimentos adequados.
Entre os mecanismos utilizados, destacam-se doações de alimentos (36,1%) e adoção de práticas sustentáveis na produção (35,4%).
“O agro já tem capilaridade, logística e relacionamento com o território. O que falta é compreender que suas ações têm impacto estrutural sobre a fome, sobre o meio ambiente e sobre a saúde dos brasileiros. Um bom primeiro passo é incentivar articulações com organizações locais, desconcentrar recursos sociais e não se furtar do debate público, que é e será sempre duro. É hora de sair da lógica emergencial e assistencialista e adotar uma postura de colaboração sistêmica”, resume Pietro Rodrigues, coordenador do estudo e pesquisador do Instituto Pensi.
Sobre o estudo
O estudo foi conduzido por pesquisadores do Laboratório de Filantropia, Políticas Públicas e Desenvolvimento do Pensi Social, unidade do Instituto Pensi — frente de Ensino e Pesquisa da Fundação José Luiz Setúbal. Foram analisados relatórios públicos de sustentabilidade, ESG e atividades institucionais de empresas ranqueadas no Valor 1000, com foco em aderência aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 2 (Fome Zero) e o ODS 12 (Consumo e Produção Responsáveis).
Do total de 150 empresas analisadas dos setores de Agronegócio, Alimentos & Bebidas e Comércio Varejista, apenas 98 apresentaram ações relacionadas à segurança alimentar.